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Autor Júnior Barbosa Data 09/01/2018 11:58

A MULTILATERALIDADE DA BIOLOGIA

Por Regis Machado Rezende (Professor de Educação Física e Fisiologista formado pela PUC-GO, Pós-Graduado e Especialista em Voleibol pela Universidade Gama Filho-RJ, CREF: 004202-G/GO, com as revisões de Adriano Passos Doutorando em Sociologia - PPGS/UFG; Mestre em Sociologia - PPGS/UFG; Graduado em Educação Física; Especialista em Fisiologia do Exercício, Avaliação Morfofuncional, Atividade Física Adaptada e Saúde).

A Biologia não é uma ciência de esquerda ou de direita, ao concordar com essa afirmação é preciso ressaltar que as ciências biológicas também não são campos de neutralidade axiológica, muito menos campos de neutralidade metodológicas como já foi problematizado por Pierre Bourdieu (1993 - A profissão de sociólogo). Muito pelo contrário, Bourdieu (1983) afirmava que o campo científico é um espaço de luta concorrencial, onde o que está em jogo é a manutenção do monopólio da autoridade científica sobre um determinado assunto, objeto ou análise.

Desse modo, o que define o limite e, possivelmente, a periculosidade das ciências, sejam elas quais forem, são os usos que fazemos de suas verdades, principalmente quando esses usos são tomados para construir declarações que atacam, excluem e estigmatizam determinados grupos sociais.  Usar de meias informações, de meias verdades para promover plataforma política, isso sim é unilateralidade e também é limitar a ciência.

Como qualquer outro campo científico as ciências biológicas são campos atravessados por feixes de poderes que criarão inúmeras ramificações e que, em si, deverão também aceitar as mutações de suas verdades, justamente aquilo que a Biologia tem feito historicamente quando acolhe positivamente as mutações e as evoluções apresentadas pelos organismos que estuda.

Não se pode delimitar conceitos que atendam à nossa necessidade para sustentar uma declaração.

Recentemente temos sido inundados com discursos baseados em “achismos”, sobretudo porque alguns grupos de pessoas que foram historicamente excluídos, silenciados e invisibilizados, começaram a conquistar espaços e serem visibilizados. Formadores e formadoras de opinião, nem sempre estudiosas ou estudiosos da área esportiva, das ciências médicas ou biológicas, tem atacado a presença ­– que para nós deveria ser lida como a correção de erros históricos ­– de pessoas transexuais no contexto esportivo de alto rendimento. Equivocadamente fazem leituras tendenciosas de trabalhos científicos para dar validade às suas falas. Citaram por exemplo o trabalho de uma pesquisadora da área médica e da fisiologia de pessoas transexuais, Joanna Harper[1], como se nem mesmo essa pesquisadora, que por sinal é uma mulher transexual, concordava com a presença de mulheres transexuais em competições femininas, a saber, de mulheres cisgéneros ­– categoria criada para definir a coerência entre o sexo biológico e o sexo identitário.

O que nos causou constrangimento não foi a utilização das afirmações de Joanna Harper, mas a constatação que as leituras que fizeram foram contrárias aos dados apresentados pela pesquisadora. Joanna Harper realizou uma pesquisa com atletas corredores de provas de rua e concluiu que as atletas transexuais que foram submetidas a terapia de reestabelecimento hormonal passaram a alcançar tempos até 12% inferiores aos alcançados um ano antes da terapia. É bom lembrar que o estatuto do COI/IAAF, exige que essas atletas comprovem ter sido submetidas a dois anos de terapia de realocação hormonal.

Para Harper, mesmo que as atletas transexuais tenham mantido sua densidade óssea e peso corporal, os testes apontaram que elas estavam mais lentas. Harper até faz uma metáfora para explicar que o corpo das mulheres transexuais são carros grandes com pequenas engrenagens e o corpo das mulheres carros pequenos, mas com engrenagens também menores. O que significa dizer que os carros pequenos e suas pequenas engrenagens podem superar em muitos aspectos os grandes carros e suas pequenas engrenagens, sobretudo quando analisamos as corridas de longa distância, como fez Harper.

Outro ponto levantado na pesquisa da Dra. Harper argumenta que em alguns esportes como levantamento de peso e ginástica rítmica/olímpica ter uma alta densidade óssea ou um peso corporal maior que de atletas cisgénero, pode ser uma desvantagem para as atletas transexuais, visto que nesses esportes  atletas com maior centro gravitacional  ­–  que seria o único ponto do corpo ao redor do qual a massa corporal (densidade óssea/peso) estaria distribuída igualmente ­– tenderão a ser prejudicadas em suas performances esportivas.   Porém, em esportes como basquetebol e voleibol, possivelmente ser mais alta/alto seria um benefício. Ainda assim, como qualquer cientista eticamente posicionado/a, Harper pergunta se somente a estatura de uma mulher transexual deveria ser um impeditivo para o seu direito de jogar nas categorias femininas. Uma resposta que a pesquisadora não nos fornece, pois, as pesquisas sobre as vantagens e desvantagens deverão ser realizadas tomando cada esporte e suas particularidades.

Com relação a estatura das atletas, a atual temporada de voleibol feminino nos Estados Unidos conta com pelo menos seis jogadoras acima de 2.00 m de altura, além de várias jogadoras acima de 1.90m.

Na atual Superliga Brasileira de Voleibol, na categoria feminina, tem nos apresentado várias atletas acima de 1.90 m de altura, o que em si, já seria um aspecto importante para questionar as/os formadores de opiniões que têm alegado o favorecimento da estatura de Tiffany Abreu perante as atletas cisgénero.

De acordo com os dados da CBV (Confederação Brasileira de Voleibol), a maior competição do voleibol profissional brasileiro, entre as 12 equipes inscritas, excluindo a equipe Renata Valinhos que não tem o perfil de suas atletas divulgadas, 09 equipes totalizam 22 jogadoras que possuem estatura acima de 1.90m inscritas, como pode-se notar no quadro abaixo:



 

Enquanto grande parte da comunidade científica, o COI e a própria Federação Internacional de Voleibol têm se mantido cautelosos, talvez porque, aguardem mais estudos sobre o assunto, outros e outras têm saído na dianteira ­– aproveitando de suas posições e de um certo desejo de manter popularidade ­– ao formular opiniões contrárias ao que as pesquisas científicas nos têm disponibilizado.

Apesar da presença de transexuais no contexto esportivo não ser algo novo, como foi bem colocado por Joanna Harper, é preciso ter paciência e esperar um pouco mais para que tenhamos mais trabalhos científicos sobre as vantagens e desvantagens de mulheres transexuais nos esportes. Ademais, é preciso ver com desconfiança a utilização de estudos sobre homens e mulheres cisgéneros para postular teorias ­– reforçando novamente que para nós isso é “achismo” ­–, sobre pessoas e atletas transexuais. Se a necessidade de mais estudos é urgente, haja vista a emergência dos acontecimentos, a postura ética de qualquer profissional, seja ele/ela de qualquer área, também deveria se fazer presente.

Qualquer profissional que estude e mantenha uma relação ética com as ciências e, particularmente, os dados que estas podem nos oferecer, tenderá a acreditar que o corpo é um conjunto de músculos, ossos, órgãos, ligamentos, etc., que se organiza e funciona a partir de inúmeras reações químicas, que qualquer fator que possa desequilibrar o seu funcionamento trará efeitos diversos, muitas vezes negativos. Chamamos esse equilíbrio de homeostase, ou seja, o processo coordenado das funções fisiológicas do corpo.

Desse modo, podemos dizer que o corpo das pessoas transexuais que passam por uma terapia de supressão e aumento de determinados hormônios, será um corpo em desequilíbrio, o que trará consequências a curto e longo prazo.

Ressaltamos também que as ciências são naturalmente ideológicas. Não existe uma abstratividade ou uma influência metafísica que inspire e instigue a natureza das ciências, independente do seu campo de atuação, que não sejam parte de uma ideologia.

Outro aspecto que tem causado desconforto é observar que alguns/algumas formadores/as de opinião têm sustentado que as atletas transexuais continuam a pensar e agir como homens, visto que elas experimentaram e foram educadas dentro de repertórios motores característicos do universo masculino. Essa afirmação é muito problemática por inúmeros sentidos, quais sejam: 1) não existe um padrão de repertório motor que não seja influenciado culturalmente, ou seja, ser um homem ou uma mulher no Brasil não é o mesmo que se espera de homens e mulheres na China, Rússia, Japão, França, etc.; 2) não existe um modelo de masculinidade e feminilidade, mas uma miríade de modelos, inclusive dentro da mesma cultura encontraremos inúmeras masculinidades e feminilidades; 3) se desde os Jogos de Berlim 1936 o COI/IAAF tem procurado por padrões biológicos que pudessem determinar quem seria mulher ou homem e essa “verdade” sobre o sexo nunca foi encontrada, como poderíamos acreditar que essa “verdade” seria oferecida facilmente pela cognição?

O COI já não faz mais o uso de definições genotípicas XX e XY para identificar homem/mulher, macho/fêmea, principalmente após o caso da corredora polonesa Ewa Klobukowska que no ano de 1967 foi banida de competições após falhar no teste de gênero realizado pela Federação Europeia de Atletismo com bases nos parâmetros do COI. Ewa foi considerada inapta a participar de competições femininas por apresentar em sua constituição genotípica o mosaico de XX/XXY.

Em 1968 após a maternidade a atleta que teve seus recordes e tempos excluídos pela IAAF, declarou que sua maior conquista era ter sido declarada Homem e ainda assim ter dado à luz.
Como já ressaltamos anteriormente o COI/IAAF tem procurado por padrões biológicos que pudessem determinar quem seria mulher ou homem sem resposta, até o momento.

O que nos parece mais sensato afirmar é que o corpo só cessará seu desenvolvimento, seja ele físico ou cognitivo, com a morte. Dessa maneira, tanto o corpo de uma mulher cisgénero quanto o corpo de uma mulher transexual estarão sempre em um processo de desenvolvimento, e sobre isso um livro básico é o de David L. Gallaheu e John C. Ozmun intitulado Compreendendo o desenvolvimento motor: bebês, crianças, adolescentes e adultos (2003).

Ademais, inúmeras outras obras que versam sobre o desenvolvimento motor, fisiologia do exercício e aprendizado motor, confirmarão que uma das características básicas do treinamento esportivo é sua especificidade. Sobre isso é importante pensar que as mulheres transexuais por terem aprendido/automatizado determinados gestos motores oferecidos antes das suas transições, não necessariamente farão uma transferência positiva, uma vez que as técnicas e as táticas desenvolvidas ao longo de séculos de segregação entre homens e mulheres, ajudaram a criar formas de jogar/competir distintas dentro de um mesmo esporte. Se as mulheres no basquetebol ainda estão se desenvolvendo para concretizar as famosas “enterradas”, elas não estão atrás dos homens quando observamos seus arremessos de “três pontos” ou da eficácia das suas “bandejas”.

No que concerne ao voleibol, a própria diferença de altura da rede demandará de homens e mulheres a automatização de gestos, técnicas e táticas diferentes, pois o que poderá fazer toda a diferença num jogo masculino, talvez não fará num jogo feminino. Alguns aspectos podem ser citados:

1) o sistema defensivo não é igual, sobretudo porque as “deixadas” de bolas e a própria jogada “china” não são frequentes nos jogos masculinos;

2) os saques dos jogos femininos são mais flutuantes do que no masculino;

3) as posições de defesa são diferentes, pois tendem a ser mais baixas para as mulheres.

 

Falando especificamente da atleta transexual Tiffany Abreu que atua no Vôlei Bauru, as pessoas discordantes tem usado a pontuação da atleta para afirmar que ela leva vantagem sobre as atletas cisgénero. Existe até mesmo um texto dizendo que em 3 jogos, ela superou a média de pontos por jogo das atletas que jogaram o campeonato inteiro.

Novamente devemos ser muito responsáveis com as meias verdades. Mostrar números absolutos não é indicativo de performance.

Tiffany atuou em 3 jogos da Superliga de Voleibol até o momento:



Tiffany sacou na Superliga 27 vezes nos 3 jogos e fez 3 pontos de saque, media de um (1) ponto de saque por jogo. A atleta jogou 13 sets o que faz sua média de saque de diminuir para 0,23 pontos por set.

Tiffany fez 3 pontos de bloqueio em 3 jogos atuando em 13 sets, obtendo também no bloqueio média de um (1) ponto por jogo e 0.23 por set.

Quando se analisa pontuação, e os profissionais da área esportiva bem como quem é/foi atleta sabe disso, não se considera apenas números absolutos. Existe diferença entre EFICIÊNCIA e EFICÁCIA.

Em eficácia a Tiffany não figuraria entre as 10 melhores atletas da competição, dado o elevado número de bolas que recebeu e a quantidade de pontos convertidos.

Em eficiência ela tem a maior média de pontos por SET(também não a faz maior pontuadora da competição como as notícias tendem a dizer) e essa afirmação não a coloca como a melhor jogadora do torneio, aliás 45% de aproveitamento no ataque não a coloca entre as 5 melhores atacantes da competição (a jogadora líder nas estatísticas de ataque de acordo com os dados da CBV é Walewska Oliveira com 60% de aproveitamento no ataque) , ou seja, a atleta não é um “ponto fora da curva”, quando se percebe os números de ações de suas companheiras de equipe. Ela foi bloqueada, foi defendida e errou ataques na mesma proporção de qualquer outra jogadora que disputa o torneio.

Tiffany é oposta nata, logo irá receber mais bolas que suas companheiras visto a não obrigação de atuar como passadora e estar sempre livre para atacar. No jogo em que Tiffany fez 30 pontos (26 de ataque), ela recebeu 63 bolas, a segunda jogadora que mais recebeu bolas em seu time, foi a cubana Yohana Palacio com 38 bolas e 18 pontos no ataque, obtendo em eficiência 47% de aproveitamento, ou seja 6% a mais eficiente que Tiffany. Paula Pequeno que foi a terceira jogadora a receber mais bolas pelo Vôlei Bauru na partida, recebeu 14 bolas. Tiffany recebeu quase 5 vezes mais bolas que a companheira. É natural que tenha pontuado mais.

A Tiffany não usufruiu por 30 anos da testosterona para formar seu corpo masculino. Um adendo para essa afirmação. Homens e Mulheres têm semelhantes níveis de testosterona e estrógeno no corpo até a puberdade. E mesmo que a tônica fosse verdadeira, de acordo com as pesquisas até o momento, inclusive o artigo da Doutora Harper, densidade óssea, peso corporal e altura não podem ser afirmados como vantagem de atletas transexuais em vários esportes.

Não se pode desacreditar o COI e a FIVB por incluírem atletas transexuais em competições de voleibol. Esse processo não foi autorizado sem estudos científicos. A atleta Tiffany Abreu também não é a única atleta transexual atuando em uma liga profissional de voleibol. A Italiana Alessia Ameri já atua desde 2016 como libero na série A2 da Itália. Na Superliga Espanhola a atleta de 18 anos Omaira Perdomo recentemente recebeu liberação para atuar na maior competição do país. Na Indonésia há atletas transexuais atuando também na liga profissional do país.
O time em que a brasileira Mari atuou na temporada 2015/2016, juntamente com a americana Logan Tom, possuía uma atleta transexual em seu elenco, entretanto não houve repercussão já que a série A2 na Itália, a Liga Espanhola e a Liga da Indonésia são consideradas Ligas Intermediárias. A tradicional Liga Universitária Americana de Voleibol NCAA também possuí atletas transexuais atuando.

Até o momento, com as pesquisas vigentes não foram apontadas vantagens entre atletas transexuais e cisgénero e certamente não no caso da Tiffany, apoiando nos números traduzidos.

Como profissionais a nossa obrigação é de estarmos abertos ao diálogo, colocar convicções enraizadas de lado até que possamos postular um parecer. Como cidadãos e amantes do esporte, também temos obrigações. Não espalhar boatos infundados com base no achismo de pessoas que não são profissionais, estarmos também abertos à leitura fora das redes sociais e abertos a aceitar estudos que discordem ou que comprovem, seja vantagens, igualdade ou desvantagens. Entretanto deve haver respeito pelos profissionais que estudam e sensibilidade com as pessoas envolvidas, sem esquecer jamais que pessoas transexuais, são seres humanos e merecem ser tratados como tal.

Finalizamos deixando algumas das referências e artigos sobre estudos com atletas transexuais.

* COMBEN, L. (1996). Transgender issues in sport. Problems, solutions and the future. Research paper, Master of Laws, University of Melbourne.

 

*DEVRIES, MC. (2008). Do transitioned athletes compete at an advantage or disadvantage as compared with physically born men and women: A review of the scientific literature. Preparing for the Promising Practices: Working with Transitioning/Transitioned Athletes in Sport Project. http://www.caaws.ca/e/wp-content/uploads/2013/02/Devries_lit_review2.pdf

 

*GOOREN, L.J.G. & BUNCK, M.C.M. (2004). Transexuals and competitive sports. European journal of endocrinology, 151, 425-429. http://www.eje-online.org/content/151/4/425.full.pdf

 

*IOC STOCKHOLM CONSENSUS (2015) https://stillmed.olympic.org/Documents/Commissions_PDFfiles/Medical_commission/2015-11_ioc_consensus_meeting_on_sex_reassignment_and_hyperandrogenism-en.pdf

 

*NCAA Inclusion of Transgender Student-athletes. (2011) https://www.ncaa.org/sites/default/files/Transgender_Handbook_2011_Final.pdf

 

*VLAHOPOULOS, S. et al. (2005). Recruitment of androgen receptors via serum response factor facilities expression of a myogenic gene. The journal of biological chemistry. 280 (9), 7786-7792. http://www.jbc.org/content/280/9/7786.full.pdf

 

[1] Disponível em: https://www.washingtonpost.com/opinions/do-transgender-athletes-have-an-edge-i-sure-dont/2015/04/01/ccacb1da-c68e-11e4-b2a1-bed1aaea2816_story.html?utm_term=.59ca03522b10 Acesso em 04 jan. 2018.

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